Há cerca de muitos
anos, eu passei a ter sonhos assombrosos com a mesma pessoa. Pesadelos do qual
eu não conseguia me livrar; e para meu desespero, nunca via seu final. Era
sempre o mesmo, vez ou outra com um detalhe diferente, mas sempre o mesmo. E lá
havia uma mulher. Uma mulher muito bonita, da pele pálida e os cabelos pretos
mais compridos que já vira em toda minha vida. Seus olhos não possuíam pupilas
ou íris, era de todo esbranquiçado. Mas seu olhar... De alguma forma aquele
olhar me prendia. Sentia-me admirada, porém com medo. Algo em mim queria chegar
mais perto, mas meu subconsciente me dizia para correr. Era mais forte que eu,
porque me sentia atraída por ela. Apaixonada por ela. Justo eu que sempre me
senti enojada por relacionamentos do mesmo sexo, vivi anos e anos sonhando com uma
mulher que além de medo despertava toda paixão em meu coração, paixão por ela.
Só por ela. E o sonho... Ele não era de todo assustador. Sempre estou em algum
tipo de museu, um tipo de exposição de arte onde eu olhava fixamente para o
quadro de uma mulher. Uma mulher triste, com lágrimas nos olhos; os lábios eram
vermelhos como se estivessem manchados por algo, sangue talvez. O quadro
mostrava um pouco de seu perfil, pouco da parte da frente de seu rosto; e
depois de tanto observar, sua cabeça se vira para mim, e sei que foi apenas
para me ver melhor. Então ela estende sua mão, me chamando. Eu não olho para os
lados, nem ao menos penso em hesitar. Apenas dou mais um passo a frente indo em
sua direção, obedecendo a seu pedido. Então, ela já se mostra pouco fora do
quadro, como se estivesse saindo dele, mas não por completo. Apenas da cintura
pra cima que é de onde se mostra no quadro. Ela toca com suas mãos em meu
rosto; as mãos frias. Nossos lábios se encontram; bem perto um do outro, porém ela
não me beija. Desce sua cabeça até meu pescoço e olha pra mim enquanto sorri
maliciosamente. E pude ver seus dentes. Eram tão brancos quanto seus olhos e
sua pele pálida, mas o que me chamou a atenção era o quanto eram afiados. Ela
os crava com pressa em meu pescoço e não sinto dor, não sinto nada. Sinto
prazer. E então, com a mesma rapidez com que cravou suas presas em mim ela
beija meus lábios delicadamente. E em poucos segundos pude sentir o gosto de
sangue percorrendo em minha boca, indo direto para meu estomago, me dando uma
sensação horrível. Novamente olha para mim e sorri. Desta vez seu olhar parece
outro. Eu vejo brilho, satisfação e desejo. E um arrepio percorre todo o meu
corpo. Ela tombou sua cabeça para o lado e parecia assustadoramente mais
bonita, seus lábios que agora estavam mais vermelhos sujos pelo meu próprio
sangue me parecia tentador. Eu podia ver o sangue escorrendo de sua boca, no
qual ela passou a língua delicadamente sobre os lábios para se deliciar com o
sabor. E de novo ela sorri, entretanto algo diferente acontece. Ela passa suas
pernas por cima da parte de baixo do quadro, como quem pula uma cerca e agora
posso vê-la completamente diante de mim. Seus cabelos tocam o chão. Seu andar
parece com o de um zumbi, um ser morto, e um pavor enorme me invade. Dou passos
para trás, instintivamente, enquanto ela lentamente anda para frente. Olho para
os lados e não há saída. E tenho certeza de que havia um corredor ali, mas ele
desaparecera. Agora não tenho mais para onde correr, cheguei ao final onde me
vi encostada na parede, e ela me olhando com uma expressão vazia, porém sem
deixar de notar que estava desejando algo para este momento. E então... Eu
acordo. Sempre da mesma maneira, a testa suada e a respiração ofegante. O corpo
pesado e as pernas trêmulas. E sempre sinto como se não tivesse dormido, como
se tudo fosse real e tivesse tirado toda minha noite de sono. Eu prefiro pensar
que é apenas um sonho. Eu me sinto tão perturbada por ele que quem dirá que não
é paranoia da minha cabeça? É tudo bobagem, essa mulher não existe e não há
maneira alguma de eu me atrair por uma. Nunca! Eu tenho meu namorado, somos
felizes juntos e eu o amo. Mas às vezes, me pergunto se esse amor também não é
mais uma coisa na minha cabeça, como se estivesse fugindo da verdade. Mas a
verdade me incomoda, então a lógica é pensar que não é real.
Hoje foi um dia
normal como qualquer outro, e antes que me esqueça, não é sempre que tenho esse
sonho. Não entendo; toda vez que pareço estar esquecendo esse pesadelo ele vem à
noite para me assombrar. É como uma maldição. Mas todo o resto do dia permanece
normal, como se tudo não passasse apenas de um mísero sonho ruim. Só que eu
sabia que não era apenas um sonho. Tive certeza essa manhã, quando eu vi uma
bela mulher da pele branca e cabelos compridos na minha escola. Era exatamente
como a mulher do meu sonho. A única diferença é que seu cabelo não era tão
grande a ponto de se enrolar no chão ou seus olhos fossem completamente
brancos. Não, era a mesma mulher, com os cabelos que batiam-lhe no final das
costas e os olhos eram tão negros quanto à noite. Ouvi dizer que ela era uma
professora nova. Mas não seria professora da minha turma. E hoje em sala de
aula recebemos a noticia de que todas as turmas de primeiro e segundo ano
teriam um passeio. Devíamos levar uma autorização para casa e levar de volta
com a assinatura do responsável em uma semana, sem falta. Infelizmente meus
pais não estariam em casa esse mês, eles estão de viajem pela segunda lua de
mel e eu estaria sozinha em casa todo esse tempo. Tive que dar um jeito sozinha,
a diretoria não conhecia a assinatura de meus pais, eles não precisam descobrir
que eu a falsifiquei. Quando chegou o esperado dia, mandei uma mensagem para
meus pais dizendo que iria sair, e caso me ligassem e eu não atendesse, para
ficarem calmos que apenas não estaria em casa. Disse também para que não
ligassem para meu celular, pois aonde ia era proibido. Foi um erro, mais tarde
descobri que uma ligação poderia me salvar. Quando chegou o dia, todos pareciam
cansados e desanimados, como se alguém tivesse sugado todas as suas energias.
Todos, inclusive eu. O passeio foi mesmo a onde eu esperava. Visitamos uma
exposição de arte e devíamos seguir com o grupo todo o tempo e não se separar
dele. O orientador dizia exatamente isso, quando ouvi. Ouvi, num tom bem
baixinho, como uma mulher chorando chamando pelo meu nome e fui a sua procura.
E lá estava ele, o quadro. Da mesma maneira como no sonho, as mesmas lágrimas,
o mesmo vazio, os mesmos olhos possuídos por um branco sem fim e a boca
avermelhada de sangue manchado. A sala estava vazia. Estava vazia até o momento
de mais alguém entrar naquele local. E este alguém era ela, a bela professora
nova.
- Oi querida.
Disse ela com a voz mais gentil, porém mais obscura que já ouvi.
- Oi. Respondi.
- Quadro bonito,
não?!
- Parece com você.
Disse com certa provocação.
- Ah, mais que
gentil. Não sou nem de longe tão bela quanto ela.
Não entendi onde
ela quis chegar com esta resposta. A mulher no quadro mostrava dor e vazio, a
pele era muito mais pálida como se estivesse doente, e os olhos... Ela não; tinha
um olhar alegre, uma pele macia e bem tratada, sorria o tempo todo e sempre
mostrava felicidade.
- Olhe para ela.
Seus olhos mostram o quanto sofreu, sua face mostra todo o medo que lhe rondou.
Todo o pesadelo do qual foi sua vida. E agora, sua imagem foi posta em quadro,
para quem pudesse admira-la. Não é bonita? Você não se sente hipnotizada? Se
sente atraída? Uma paixão tão forte e inexplicável?
Por
que ela me dizia isso? Mas no fundo eu já sabia. E infelizmente tive de
concordar. Aquele quadro, aquela mulher, até hoje, a única do qual amei. Como
posso dizer que a amo? Eu não a amo. Eu estava hipnotizada. Parecia também
paralisada. Não parava de fitar o quadro quando senti um leve toque em meus
ombros e sua respiração em meu pescoço; as mãos eram frias, eu sabia o que me
aguardava e não conseguia me mover, ou gritar, nem nada. E pouco depois fui
salva. Fui salva ao ouvir um toque e um vibrar vindo do bolso de minha calça.
Logo tudo voltou ao normal, conseguia me mover novamente, pensar por mim mesma.
Imediatamente peguei o celular e sai daquele lugar, com o celular no ouvido. E
foi quando vi. Foi quando vi a expressão vazia de dor e as lágrimas prestes a
escorrer de seus olhos. Estava pronta para correr e pular em seus braços. Sabia
que no fundo não era o que queria, mas o que posso fazer se mesmo sem querer,
eu me sinto apaixonada? Mas logo fui trazida de volta. Quando ouvi um alô, alô,
vindos do telefone. Eram meus pais. Queriam dizer que voltariam para casa
imediatamente, uma semana e pouco antes do previsto. Estavam com uma sensação
estranha. Um pressentimento ruim de que algo poderia acontecer a qualquer momento.
E não deixariam a filhinha de 15 anos sozinha em casa em meio a todo esse
terror. Meus pais eram meio supersticiosos e tinham uma intuição aterrorizante.
O problema é que só poderiam pegar o avião de volta em dois dias, pois tinham
uma parte paga no hotel em que estavam. Aconselharam-me a não sair de casa e ir
a escola se fosse muito necessário. E droga, tinha provas de final de ano logo
agora. E vai ser amanhã, eu não posso simplesmente faltar. Depois de um bom
tempo pegamos o ônibus de volta para a escola e a professorinha, cujo nome era
Catarine, nem ousou me olhar. Parecia abatida e não aquela mulher sorridente e
gentil que todos havíamos conhecido. Parecia mais que a qualquer momento
desabaria. Na escola tentei ao máximo evita-la, mas era impossível. A
encontrava em todo lugar que ia. Tentava ao máximo não encara-la. Tentava nem
ao menos olhar para ela. Mas teve um momento, um momento em que no corredor não
havia ninguém. Completamente deserto. Quando ela apareceu em minha frente do
outro lado do corredor e vinha em minha direção com passos lentos. E logo me vi
de volta ao meu sonho. Só que agora não era sonho, era realidade. Me vi dando
passos para trás e sendo parada por uma parede atrás de mim. E via ela me
encurralando contra a mesma, sorrindo. O mesmo sorriso malicioso do qual ousava
usar em meus sonhos quando estava prestes a fazer algo que eu imaginava ser
terrível. Para minha surpresa ela apenas... Ela apenas me beijou. E o pior é
que retribui o beijo, como se estivesse esperando por isso a minha vida
inteira. Então paramos. Pude sentir o sabor metalizado de sangue em minha boca.
Mas não havia vestígios de sangue na boca dela. Estava sem ar por conta do
beijo, e quando a vi, percebi que em seus olhos haviam desaparecido as pupilas
e as íris. Mas sua pele parecia mais bonita, mais macia e mais lisa, com uma
cor saudável diferente daquela clareza de quem já morreu. E de Novo ela sorriu.
Passou a língua lentamente pelo lábio superior e chegou mais perto de meu rosto.
Agora havia recebido um simples celinho.
Agora me via com a respiração ofegante, mas não de prazer. Não conseguia
respirar, sentia como se algo apertasse minha garganta e aos poucos fui
perdendo todo o oxigênio. E já muito zonza, me vi sendo mordida. Sim, suas
presas haviam sido cravadas em meu pescoço e agora era real. E eu sentia dor,
não sentia prazer. Ela tirou os dentes branquíssimos como os molares de uma
criança de meu pescoço e pude ver meu sangue escorrer. E sem ao menos perceber,
sem entender, sem poder fazer nada nesta situação, eu desmaiei. Pelo menos na
hora, eu pensei ter desmaiado.
- Diretora,
Diretora. Gritava uma professora desesperada segurando desajeitadamente uma
menina adormecida no colo.
- Mas o que houve
minha jovem?
- Esta aluna, a vi
no corredor agora a pouco. Reclamava que sentia falta de ar e pouco depois caiu
em meus braços. Está gelada e inconsciente.
- Deixe me vê-la.
Disse à médica que estava na diretoria. - Está realmente gelada; Oh, não pode
ser. Disse ela.
E neste mesmo
instante ouviu o som de um toque. Um celular. Era o da menina, seus pais
ligavam desesperados depois de um pressentimento apavorante.
- Querida minha
filha. Você está bem minha linda? Estamos preocupados, chegaremos em um dia,
espere só mais um pouco. Dizia a voz desesperadamente.
- Alô.
- Alô?
- Aqui é a
diretora Louise; eu lamento pela senhora. Eu lamento muito ter de dizer isso,
mas algo terrível aconteceu a vocês. Eu lamento, mas sua filha está... E antes
de terminar só se ouvia o tu tu tu do telefone. E o olhar de todos, tristes e
vazios. Mas Catarine parecia irradiante, não via a hora da chegada da próxima.
Não via a hora de estender sua vida cheia de beleza e muito ódio para que viva
por mais anos e anos, sendo linda, sendo amada, sendo desejada. Sendo o
pesadelo de muitas garotas bonitas que ainda passariam por si. As castigando da
mesma maneira com que foi concedida a muitos, muitos anos atrás.